domingo, 21 de outubro de 2012

Pé infantil pode explicar evolução humana

REINALDO JOSÉ LOPES da Folha de S.Paulo em 06/12/2003.
Se depender de um bioantropólogo americano que está passando uma temporada na USP, a expressão "teste do pezinho" vai acabar ganhando um significado dos mais insuspeitos. Medindo os pés de centenas de crianças paulistanas, ele quer mostrar que as modificações neles durante o crescimento refletem, na verdade, a longa transformação da humanidade numa espécie bípede.

Os instrumentos de trabalho de David Webb, 42, não podiam ser mais prosaicos: um recipiente de plástico, desses usados para guardar pedaços de bolo na geladeira, recheado com uma esponja lambuzada de tinta. O "teste do pezinho" é feito com as crianças pisando ali e usando o pé como carimbo numa folha de papel. "Adoro esse negócio, é muito prático", brinca o pesquisador da Universidade Kutztown, no Estado americano da Pensilvânia.

Webb está no Brasil desde setembro, trabalhando no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP ao lado do bioantropólogo Walter Neves. A intenção do pesquisador é usar as medidas das crianças brasileiras para estudar as famosas pegadas de Laetoli, na Tanzânia (África Oriental), que têm 3,6 milhões de anos de idade e representam um dos maiores enigmas no estudo da evolução humana, assim como outras marcas deixadas pelos pés dos hominídeos.

Descobertas nos anos 70, as trilhas de Laetoli provavelmente foram feitas quando uma fina camada de cinzas vulcânicas foi atingida pela chuva, criando algo parecido com cimento fresco. Um sem-número de animais caminhou pela área, inclusive uma dupla de criaturas cujas pegadas são praticamente idênticas às que um ser humano de hoje deixaria.

Pés de macacos

"Isso é fácil de ver porque os grandes macacos têm os dedos dos pés curvados e um dedão que mais parece um polegar --é como se o pé fosse uma mão", explica Webb. Além disso, o comprimento dos dedos nesses bichos é bem maior, quando comparado com o resto do pé, do que nos humanos modernos.

"Nós comparamos moldes dessas pegadas com os de gibões, gorilas e chimpanzés de hoje, e parece que os dedos eram relativamente curtos mesmo", conta o bioantropólogo. O problema é que, quando entraram na dança os fósseis da fêmea "Lucy", um membro da espécie Australopithecus afarensis à qual, teoricamente, pertenceriam os autores das pegadas, algo não se encaixou: os dedos do fóssil pareciam grandes demais para fazer pegadas daquele tipo.

É aí que entram as medidas dos pés das crianças brasileiras. Para o pesquisador, a estranha discrepância pode ter a ver com uma característica que parece ser comum nos mais diferentes níveis do processo evolutivo --algo que os cientistas costumam sintetizar com a frase "a ontogenia recapitula a filogenia".

O ditado parece ininteligível, mas na verdade é bem simples: a idéia é que o desenvolvimento de cada indivíduo hoje, da barriga da mãe à maturidade (a ontogenia), recapitula vários dos estágios da evolução daquela espécie (a filogenia). Os seres humanos, por exemplo, têm fendas branquiais quando são fetos --assim como o ancestral aquático do Homo sapiens. "Claro, isso tem limitações. Você tem fendas branquiais, mas não brânquias de verdade na fase fetal", diz Webb.

Se isso vale para a evolução dos pés, provavelmente os bebês nascem com dedos proporcionalmente maiores, que vão diminuindo até se estabilizar na adolescência. O bioantropólogo e dois orientandos de Neves na USP, Danilo Vicensotto Bernardo e Tiago Hermenegildo, já obtiveram impressões dos pés de 286 crianças e adolescentes de 3 anos a 14 anos de idade.

Uma das dificuldades do trio, por enquanto, é como estabelecer com precisão o eixo que corta a palma dos pés horizontalmente abaixo dos dedos, essencial para estimar a proporção. "Ainda temos um erro muito grande na medição, dependendo do local na curvatura do pé que escolhemos para traçar o eixo", diz Webb.

Apesar disso, resultados preliminares estão mostrando que "a ontogenia realmente recapitula a filogenia", diz Webb. Para ele, as medidas poderão fornecer, no futuro, estimativas da idade e do grau de desenvolvimento dos hominídeos de Laetoli e de outros ancestrais humanos pelo mundo.
 
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